Há cerca de 14 anos, quando cumpria mais uma jornada de trabalho em uma grande empresa de São Paulo, o então montador de equipamentos eletrônicos, Manoel José dos Santos, sofreu um mal estar que mudaria profundamente a sua vida. Portador de diabetes tipo 1, após ficar 15 dias entre a vida e a morte e de perder o movimento de uma das pernas, ele decidiu voltar para a sua Bahia. Nascido em Buerarema, Manoel e sua esposa Diva escolheram Porto Seguro para viver e criar os filhos Felipe, Catiane e Janaina.
Aposentado, ao encontrar pessoas com problemas semelhantes e outros mais graves que o seu, Manoel assumiu a bandeira de pessoas que como ele, lutavam para ter uma vida melhor, apesar das limitações físicas. Hoje, aos 43 anos, como fundador e presidente da Associação dos Deficientes, ele se orgulha e agradece a Deus por estar vivo, enquanto alimenta o sonho de construir a sede da associação, nem que seja essa a sua última missão.
Como você chegou a Porto Seguro?
Eu moro em Porto Seguro há 14 anos. Assim que eu me aposentei em São Paulo, eu falei para a minha esposa: “vamos voltar para a Bahia”. Quando eu cheguei aqui e vi o sofrimento daquelas pessoas portadoras de necessidades especiais, fui avaliando o caso de cada um, e procurei um jeito de fundar uma associação. Porque eu passei pela mesma situação que eles passavam. Como eu sabia mais das leis, aí eu pensei, “eu posso ajudar essas pessoas”. Um dia eu fui pegar um coletivo e o cobrador queria que eu pagasse a passagem. Aí eu falei “eu não vou pagar, porque a lei está comigo”. Então eu procurei o Ministério Público, na pessoa do Dr. Maurício Magnavita, que sempre nos ajudou muito apoiando. Então nós fomos evoluindo e hoje as pessoas ainda têm dificuldades, como o passe livre, mas melhorou muito.
O passe livre foi uma conquista de vocês...
Infelizmente o passe livre aqui deveria ser feito pela prefeitura ou pela Associação dos Deficientes. Mas o que acontece é que as pessoas pegam um laudo médico, a prefeitura manda para a empresa e lá eles fazem o que eles querem, contrariando a lei. Outra coisa que tem que ser revista é a Lei Orgânica Municipal, porque a empresa se aproveita dessa lei. A pessoa só tem o passe se faltar um braço, uma perna, andar de cadeira de todas ou de muleta. Mas não pode ser assim, tem vários tipos de deficiência e precisamos trabalhar esse tipo de coisa. É até chato falar isso, mas infelizmente, em pleno século XXI, a gente ainda sofre muito preconceito.
Qual foi o acontecimento que fez de você uma pessoa com deficiência?
Sou diabético do tipo 1, desde criança e essa diabetes foi complicando a minha situação. Então eu fui para São Paulo para me tratar, consegui um emprego e acabei ficando por lá. Trabalhei muitos anos de pé, em salas geladas e a diabetes me paralisou a perna. Eu fiquei 15 dias na UTI e quando eu sai, não andei mais. Eram 11 horas da manhã, eu estava trabalhando numa linha de produção, quando passei mal. Aí um amigo meu viu e falou assim, “Manoel, nossa você está mal”. E eu estava me sentindo muito mal mesmo. Aí naquele momento eu fui até a enfermaria e o pessoal estava almoçando. Quando subi o último degrau da escada eu já caí e várias caixas de computador caíram em cima de mim. A sorte é que as caixas estavam vazias. A partir dali eu não vi mais nada e já entrei em coma. Aí eu fui socorrido, fui para o pronto socorro do hospital e depois para a UTI. O médico já ia me aplicando glicose, e minha glicose estava em 645 mg. Se ele tivesse aplicado eu teria morrido naquele momento. Mas Deus pôs a mão no meio e meu amigo chegou na hora com um resultado de exame. Aí eu fiquei na UTI por 15 dias, fui me recuperando. Eu tinha convênio de saúde, aí fiz bastante fisioterapia e diversos exames que foram até para os Estados Unidos. Aí o médico falou: “Manoel, sinto muito lhe dizer, mas o seu caso provocou uma paralisia na sua perna.”
Mas hoje você leva uma vida normal...
Ah, graças a Deus, eu ando com as muletas e faço ajudar as pessoas. Eu tomo insulina, a gente vai se acostumando (risos). Eu tenho um aparelho que eu meço e vou controlando.
Qual é a fonte de renda da entidade?
Hoje temos uma média de 400 associados. Isso porque nem todos os deficientes de Porto Seguro são associados, porque se fossem, a gente passava de 2000. São pessoas com problemas mentais, visuais, e outros tipos de problemas físicos. Nós não temos recursos. A associação paga as dívidas através da ajuda da Vara Crime. Para as pessoas que cometem determinados delitos, o juiz determina que essas pessoas depositem recursos para a associação x. É tipo um rodízio com outras entidades. E é assim que pagamos as contas, mas a gente não recebe do próprio deficiente.
Durante todos esses anos, para você, qual foi a maior conquista da associação?
A nossa maior conquista foram os ônibus adaptados. Foi uma luta vitoriosa nossa e Porto Seguro é a primeira cidade no Extremo Sul da Bahia contemplada. Infelizmente ainda não são todos os ônibus, mas por lei toda a frota deveria ser adaptada. Muitas vezes o ônibus adaptado está quebrado e as pessoas ligam o tempo inteiro para a associação. Aí procuramos a empresa e ela diz que vai ver, que vai arrumar.
Vocês agora estão querendo construir a sede da entidade...
A associação funciona num imóvel que é da minha propriedade. Eu cedo o espaço, sem cobrar aluguel. Só que hoje nós temos um terreno doado pela prefeitura, uma área de 800 metros quadrados, que fica no Baianão, em frente à praça do Trabalhador. Já temos o projeto prontinho e estamos aguardando doações para que possamos construir a nossa sede. Essa sede vai beneficiar muitas pessoas, as crianças, as famílias, porque vai ter piscina, vamos ter fisioterapeuta, cursos de formação, tudo para ajudar os associados. Agora estamos precisando de apoio, não só dos empresários, como do poder público. Queremos oferecer cursos de informática, artesanato e outros projetos, para que o portador de deficiência saia preparado para o mercado de trabalho.
Qual é o custo da obra?
A associação não é minha, ela é do povo. A nova sede vai custar um milhão de reais para ser construída e se a gente conseguir construir, ela não é minha, ela é do povo. Eu não sou dono de nada. Eu sou dono da minha casa. Quem quiser colaborar, o nosso endereço é rua 19 de novembro, 448, Bahianão, fone 3268-1058. E temos uma conta corrente no Banco Itaú, Ag. 1648 Conta 18234-1. Quem quiser e puder, também pode ajudar com material de construção. Já conseguimos a doação de mil lajotas. Mas a gente reconhece a situação que enfrentamos hoje no país. Sei que não é fácil conseguir 1 milhão, mas eu sou um homem de muita fé e acredito que vamos conseguir, nem que seja a minha última missão nessa vida.
A lei exige que as empresas com 100 ou mais funcionários contratem pessoas com deficiências. Mas elas alegam que não conseguem. Por que isso acontece?
Nós já empregamos muitas pessoas, que trabalham na Gol, Sinart, Cambuí, Club Med, La Torre e outras. Veja bem, se a pessoa ganha um salário mínimo, sem trabalhar, como ela vai ganhar um salário mínimo para trabalhar, ainda correndo o risco de perder o benefício e o emprego? Essa é a dificuldade. A solução seria oferecer uma melhor remuneração. A questão do estudo também é uma dificuldade. Eu tenho um amigo que é administrador de empresas e uma empresa ofereceu para ele um salário mínimo. O mercado não valoriza. Eu queria falar também que a gente, que é deficiente, quando entra num comércio não tem a mesma atenção. Quando um deficiente entra numa loja, as pessoas pensam que ele vai pedir e não vêm como alguém que pode comprar.
E quais são as maiores dificuldades que o portador de necessidades especiais enfrenta para viver em Porto Seguro?
A primeira delas é a acessibilidade, pelo amor de Deus, precisa melhorar muito. Se você tem uma rampa, os motoristas estacionam em frente, nem todo mundo respeita. Outra dificuldade é a questão da prioridade, que dizem que temos, mas não temos de fato. Já me deixaram esperando um dia inteiro por uma consulta médica. Quer dizer que eu uso as muletas porque eu acho bonito? Um dia eu estava de pé e uma senhora veio me dar cinco reais. Eu olhei para ela e disse: “dona, muito obrigado pelo seu bom coração, mas eu não estou pedindo”. Às vezes a pessoa nem faz por maldade. Claro que tem muito deficiente que pede, e isso eu não concordo. O deficiente tem o seu benefício e não precisa pedir. Eu sei que o salário é pouco, mas não tem precisão de pedir, porque o benefício é para ele mesmo.
Qual é a sua maior recompensa de desenvolver esse trabalho?
A maior recompensa que eu tenho é do meu Deus, que está sempre comigo, me dando força, coragem, pra mim e minha esposa. Porque a minha esposa é uma excelente mulher, ela é uma guerreira, que cuida da associação como se ela fosse deficiente também. Ela conhece, empurra uma cadeira de rodas sem ter a vergonha de ser vista ali, ela briga, ela luta, ela chora, faz tudo pela associação. Muitas pessoas admiram o nosso trabalho por causa disso, a gente não faz nada por dinheiro. Não somos remunerados por esse trabalho, fazemos por amor. A gente ganha o amor de Deus, as bênçãos e tá bom assim. Eu sou católico, participo das missas com minha esposa e minha maior alegria vai ser quando a conseguirmos construir a nossa sede.
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