Barracas de praia ainda não estão livres da demolição

Em 2014, quando assumiu o comando da subseção da Justiça Federal em Eunápolis, o juiz Alex Schramm de Rocha encontrou em andamento 52 processos, talvez dos mais polêmicos e desafiadores de sua carreira. Estava em jogo ali o destino das barracas de praia da Orla Norte de Porto Seguro e de seus empreendedores e funcionários. Para a sorte dos envolvidos, o juiz havia presenciado o desenrolar de um procedimento semelhante, envolvendo as barracas de praia de Salvador, e que não terminou bem. Nessa entrevista exclusiva ao Jornal do Sol, ele conta os bastidores do acordo envolvendo a Justiça, MP, donos de barracas de praia, IPHAN, SPU, município e demais órgãos envolvidos, que acabou evitando a derrubada dessas estruturas. Sem perder de vista os rigores da lei, e fazendo questão de lembrar que o fantasma da demolição continua rondando Porto Seguro, Dr. Alex Schramm demonstra sensibilidade e bom senso, que se traduzem em uma nova oportunidade para toda a cidade.

O que levou o sr. a intermediar um acordo que evitou a demolição das barracas de praia em Porto Seguro?

Em 2014, quando eu cheguei aqui, já encontrei os processos. Eu sou de Salvador, vivi lá enquanto existiam as barracas de praia, que vi surgirem e vi também a demolição de todas elas. Eu sei o que é ter barraca de praia ruim, que deprecia o meio ambiente, que apesar de ser uma atividade econômica e de trazer um certo conforto para quem ia à praia, por outro lado era uma imundície, em alguns lugares tinha comércio de drogas, prostituição. Então a orla de Salvador estava muito degradada, sem contar a estrutura física, que era muito precária, horrível. Aí teve aquela ação, e colocaram todas as barracas abaixo. Eu tenho casa lá também, perto da praia, e vejo como é o abandono. Como não tem nada, eles colocam guarda-sóis, isopores e surgem ambulantes vendendo peixe frito e outros alimentos que você não sabe qual é a procedência. 

Ou seja, foi uma experiência que não deu certo. E como foi esse processo em Porto Seguro, até sair o acordo?

Aí eu chego aqui em 2014 e encontro vários processos, que o colega que me antecedeu, o Fábio Stief, já tinha marcado reunião, tentando fazer um acordo. Começamos então a tocar esses 52 processos. Porto Seguro é uma cidade conhecida, bonita, paradisíaca, que tem um apelo turístico e cultural muito forte, em função do Descobrimento, que nenhum outro lugar do Brasil tem. O juiz não pode obrigar ninguém a fazer acordo, mas começamos a chamar as pessoas e dizer “olha, nós temos essa opção”. Sentenciar um processo é fácil, dá o trabalho de estudar, mas a gente já estudou muito, mas nesse caso, não resolveria o problema, porque sabemos dos impactos, da dificuldade da pessoa que está tocando aquele negócio, pois vivemos em um país onde isso não é fácil ter acesso a crédito e outros incentivos. Aí tentamos ver junto ao IPHAN, Ministério Público, SPU, se era possível a regularização. Fizemos um levantamento de todas as barracas, a SPU fez um estudo, mapeou todas as barracas, o MP foi ao IPHAN, que fez um levantamento indicando cada barraca, se era passível ou não de regularização. Como todas essas barracas tinham uma questão muito forte de impacto paisagístico, marcamos uma inspeção judicial sui generis. Nós solicitamos barcos pela Marinha e navegamos pelo litoral, para que tivéssemos a visão do mar, porque o que é tombado aqui é justamente a vista que Cabral teve quando chegou aqui.  Aí observamos que muitas barracas realmente ofendiam essa paisagem. Toldos brancos, guarda-sóis brancos, cores fortes sujam, mancham essa paisagem histórica. E o positivo foi que a gente enxergou barracas que não ofendiam a paisagem. Porque elas estavam mimetizadas naquele contexto, integradas à paisagem. E a questão da paisagem não é apenas visual, tem também o aspecto da proporção da área ocupada. E aí ficou comprovado que era possível compatibilizar, adequar.

Foi uma grande negociação que resultou em acordo. Quais foram as condições?

Sim , e não é uma negociação como ocorre na justiça particular, onde a pessoa pode abrir mão de tudo que tem. No caso do Estado, ele não pode abrir mão de nada. Na verdade existe uma certa subjetividade em dizer qual é o meio para se atingir um fim público. Qual é o percentual de utilização, de volumetria, o que é razoável. O objetivo é preservar o ambiente histórico e paisagístico. Aí é que vem a insistência em tentar o acordo. A visão que eu tive e que todos tiveram era a seguinte: se não tiver nada lá, vai ser ocupada por quem? Poderia ser favelizada, poderia se jogar lixo, claro que isso também não dá direito a um particular de chegar e explorar uma área pública. Então tem que ter contrapartidas. Aí buscamos um jeito de fazer com a pessoa que esteja explorando uma determinada área, desde que ele respeite as especificações aprovadas pelo IPHAN e SPU, que ela tenha que cuidar do limite restante.  Foi aí que em 2016 nós fizemos uma audiência coletiva, aberta ao público, na Câmara de Vereadores, com todas as partes envolvidas, MP, donos de barracas, advogados. Aí fechamos um pacote de providências, que todos concordaram. A vantagem do coletivo é que todos os parâmetros são discutidos ao mesmo tempo, com o mesmo tratamento para todos.

E porque acabou saindo a sentença de demolição?

Antes da audiência geral, nós fizemos uma audiência para conversar com as maiores,  em 2015. Eles trouxeram os projetos, se comprometeram a fazer as intervenções, mas aí começaram a pedir prorrogação. E o Ministério Público não aceitou e eu pensava assim: “eles não estão tendo consciência da oportunidade que estão tendo”. E eu falei isso várias vezes para eles.  Aí eu pensei: “já que é assim, eu vou começa a sentenciar. E vou começar por qual, vou começar pelas maiores”. Aí peguei as duas maiores e sentenciei as duas. Aí foi aquela comoção.

Muita gente dizia que a Justiça não mexeria com as grandes ...

As menores têm mais dificuldades em se proteger. Aí eu fiz a sentença e mandei que se cumprisse imediatamente, que lacrassem as barracas, aí foi aquele alvoroço, falaram que eu estava acabado com os empregos. Só que tem um detalhe que eu coloquei na sentença. Qual é o grande atrativo de Porto Seguro? É o Descobrimento e não as barracas. Eles querem dizer que o que traz turistas para Porto Seguro são as barracas. As barracas dão apoio e estrutura para os turistas virem em maior número, terem mais opção de lazer. Mas não podemos perder de vista que o litoral brasileiro é enorme e que o que existe aqui e não tem em todos os lugares é o apelo histórico. E não podemos destruir isso, por conta da barraca de praia, porque o dia que destruir isso, a barraca de praia daqui vai ser igual a qualquer outra. Aí foram dadas as sentenças e o tribunal suspendeu as duas. Eu comecei por aquelas, mas já estava preparado para sentenciar todas, porque não posso ficar com os processos parados. Tinha que começar por alguém e se eu sentenciasse uma poderia favorecer a outra. Só que quando saíram as sentenças aí veio todo mundo tentando o acordo. Foi aí que nós fizemos algumas reuniões e marcamos essa audiência na Câmara, no final do ano. Aí montamos o pacote de novo, com o cronograma, tudo casadinho com um ano para cumprir. Não cumpriram. As barracas teriam que apresentar seus projetos de adequação. E depois de um ano, de 2016 para 2017, muitos não estavam apresentando seus projetos e outros estavam apresentando de forma errada, ou ruim. Aí fizemos outra reunião, só com o IPHAN e o município, que também pediu para prorrogar.

Nesse meio tempo, duas barracas, a Macuco e Malibu conseguiram se regularizar?

Não, eles foram os primeiros a conseguir apresentar um projeto dentro do que foi aprovado pelo IPHAN e SPU. Com esses dois a gente marcou recentemente uma audiência para fazer a homologação do acordo.  Nessa homologação ficou definido o cronograma de execução do projeto, com uma prorrogação já permitida nesse combinado e após o vencimento desse prazo, se não fizerem, é demolição. Eles já não têm mais o que recorrer. Ou fazem ou é demolição. São nove meses para concluir. Dentro desse prazo já estão previstos chuvas, dissídio de categoria e tudo mais que a jurisprudência prevê.  São projeto novos, serão novas barracas.

Em relação às 52 barracas, as intervenções serão muito grandes?

Pelos projetos apresentados, a tendência é de demolição e reconstrução. Até porque não serão permitidos estacionamentos do lado da praia. Essas intervenções já estão adequadas ao Projeto Orla, da prefeitura, que não prevê estacionamento daquele lado. A volumetria diminuiu, a altura diminuiu, não pode haver mais que uma determinada altura para o pé direito, tem uma área limitada que é possível fazer de alvenaria, para a parte de cozinha, bem reduzida. Tudo isso foi aprovado pelo IPHAN. Algumas terão que ser divididas em módulos, algumas alterações serão mais drásticas que outras.

Quem não se adequar continua correndo o risco de demolição?

Nesse acordo está previsto o seguinte, ou faz nesses prazos, ou vai ser demolido. Isso já está aceito pelos próprios empresários. O procurador Fernando Zelada sinalizou que já tinha entre 15 e 30 próximas de serem aprovadas também e que as demais ainda poderiam ser regularizadas. Agora eu não sei se vai dar tempo, porque na verdade o prazo já se esgotou. A gente trabalha com muitos processos e quando chegar, nós vamos sentenciar. A expectativa agora é a seguinte: saiu a sentença, a tendência é ser demolido. Uma coisa que achei positiva desses dois primeiros [Tôa Tôa e Axé Moi], foi uma proposta interessante de redução, e que eu torço para que eles consigam executar, porque seria muito triste ter que demolir, depois de tanto esforço. Mas se tiver que demolir ... A sentença já está dada.

Em caso de demolição, o que acontece com a área?

É uma grande oportunidade de se regularizar e é um grande negócio. E tem um detalhe na legislação, se essas pessoas que estão lá não regularizarem e as estruturas forem demolidas e o Estado quiser passar essa área para outra pessoa, tem que se abrir licitação. Tem uma legislação que permite a regularização de quem já ocupava até 2014 e só quem já estava ocupando pode se regularizar, nenhuma outra pessoa. Então quem já tem essa faculdade, vai perder?

O turismo de massas justifica a ampliação dessas barracas?

É uma atividade privada e o interesse, em primeiro lugar é do empreendedor. Eu sei que gera emprego, mas o grande lucro que gera é para a própria barraca. Tem uma questão de impacto trazida por uma das barracas, que na alta estação recebe mais de duas mil pessoas por dia. Sob o ponto de vista de circulação de pessoas e de impacto urbanístico, ambiental, de saneamento, como dar vazão de banheiro para tanta gente? Isso é uma questão que tem que ser pensada. Não podemos pensar só sob o ponto de vista de explorar, mas de ocupar com qualidade, com sustentabilidade. E é um contra-senso vir para um lugar paradisíaco e fazer mal ao ambiente natural. É como o pessoal que faz trilha, turismo ecológico, aí pega motos, quadriciclos e passa por cima de tartarugas, restingas. Que turismo ecológico é esse?

Por que a situação das barracas de praia chegou a esse ponto?

Há um questionamento sobre porque o Ministério Púbico e o Judiciário estão se metendo nisso.  O ideal é que isso fosse resolvido pela União, pelo município, pelo poder Executivo. Se alguém ocupa irregularmente uma área, a lei autoriza o Estado a usar a própria força para desocupar. Existem formas de embargar a obra, pode chegar lá e demolir, usar a própria força, acionar a polícia. Só que de um tempo pra cá, aí é um fenômeno brasileiro, nós vemos o Estado precisar de uma liminar na Justiça para reintegrar um prédio que foi invadido. Por que isso passou a acontecer? Porque politicamente passou a ser pesado para o administrador enfrentar com polícia uma invasão. Hoje em dia, o que é que eles fazem? Entram com uma ação de reintegração de posse na Justiça. Aí o juiz defere, porque está sendo ocupada uma área da União e o que prevalece? “Estamos cumprindo uma ordem judicial”. Não é mais a ordem do governador, nem do prefeito. Se o prefeito fosse lá e derrubasse, o que iriam dizer do prefeito?

Qual é o prazo para essa questão das barracas ser definida?

Por mim já teria acabado. É uma questão de bom senso. A orientação aqui na secretaria é de pegar os processos para sentenciar. Só que quando pego um processo e tem um parecer do IPHAN dizendo que foram dados 15 dias para regularizar, quando volta já é para sentenciar.