O milagre da morte

Publicado da edição 418 do Jornal do Sol 

“Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris” (Liturgia quaresmal)

A gente costuma chorar, manifestar pesares, vestir o luto e garantir aos parentes do falecido (a) que vai ter uma memória eterna do bem que ela (e) fez. Existe também, na liturgia “das cinzas”, no começo da quaresma, o costume colocar na fronte dos fieis uma pitada de cinza convidando à conversão e fé no Evangelho; mas, quando nas celebrações eram em latim, a frase era mais explicita: “Lembra-se homem que és poeira e à poeira voltarás”.

Não tinha distinção de sexo, usava-se só o masculino, não apenas pelo tradicional machismo clerical, mas, talvez, para lembrar que depois da morte não existem mais diferenças: homem mulher, rico pobre, poderoso ou mendigo; todo mundo vira cinza.

Se for verdade, como todo cientista acredita, que “nada se cria, nada se perde, mas tudo se transforma”, como dizia Lavoisier desde os anos 1700, vale a pena não esquecer que as novas descobertas na micro ou da nanotecnologia valorizam até partículas menores que a cinza. Voltando ao sentido da “celebração quaresmal das cinzas”, podemos lembrar que as façanhas positivas ou negativas, permanecem no consciente do universo, seja para serem imitadas, seja para serem execradas.

A morte é a entrada da memória eterna

Saibam os santos, (a palavra significa “afastados do mal”), as pessoas do bem, a turma dos honestos, caridosos, sensíveis, os que procuram a paz e bem comum, que são eles o maravilhoso acervo das pessoas de bem, cujo exemplo de vida, pode ser imitado.

Saibam os malvados, os fichas-sujas, os corruptos, os injustos, os exploradores dos outros que, mesmo que consigam enganar o poder judiciário humano, não conseguirão enganar a justiça da memória que, de geração em geração, os terá sempre como mortos, pessoas que trilharam os caminhos ruins da humanidade.

Se a memória do povo é curta, se os eleitores esquecem o passado dos candidatos, se, com o dinheiro roubado estes ladrões conseguirão enganar a sociedade, nunca poderão enganar a memória do que eles fizeram. E a maior punição será a permanência eterna no remorso, na impossibilidade de desfazer o mal que fizeram; serão os verdadeiros “despossuídos” de redenção e a fama deles será sempre daquele que “roubou a merenda escolar dos meninos, superfaturou a compra do material de saúde, das obras de manutenção do escoamento sanitário, das estradas...”

O milagre da morte é restabelecer a justiça

Existe o provérbio que “a justiça demora mas não falha”. Nem sempre é verdade, pois muitas e muitas vezes os julgamentos demoram para sair, são definidos na base das versões políticas ou econômicas ou pessoais do juiz, enquanto a justiça deveria ser cega, quer dizer julgar apenas e só os fatos e as provas, não as intenções do réu ou do juiz.

A morte realiza um julgamento isento de erros: com ela todos viramos cinzas. Permanecem nos vivos apenas a recordação do bem ou do mal que foi praticado e a possibilidade de imitar ou rejeitar o exemplo dos falecidos.

Às vezes, teria a vontade de ser o palhaço romano que devia acompanhar o herói que vinha celebrar o triunfo pelas vitórias conseguidas e poder dizer a ele, baixinho, bem no ouvido dele, contra as ovações do povo: “Memento mori”. Dizer então aos eleitos nas eleições fraudadas: “Lembre-se, vai morrer”.


Antônio Tamarri é professor de História e Teologia