Maniqueísmo: a grande heresia

PUBLICADO NA EDIÇÃO 415 DO JORNAL DO SOL 

A impossibilidade da redenção

Por volta do terceiro e quarto século depois de Cristo, o mundo, praticamente sob o império dos romanos, foi sacudido por uma doutrina que afirmava o contínuo conflito entre o reino da luz (o bem - Deus) e das trevas (o mal - diabo). A humanidade estaria dividida em poderes opostos e incompatíveis onde o espírito é o bem; e a matéria é ruim; não teria solução para sair deste impasse. Seria assim anulada a vinda redentora de Jesus na terra, predicando que o amor, a compreensão, a aceitação do outro como irmão e não como adversário, poderiam melhorar a vida da humanidade. Impossível a redenção.

O maniqueísmo hoje

Hoje, a crença de estarmos numa eterna luta retorna a dividir a humanidade de forma muito perigosa.Vivemos no reino do racismo, da homofobia, do desprezo pelos que tem “outras” tendências sexuais; engolimos a exclusão dos pobres, dos deficientes físicos, das femistas e até das mulheres, que nunca padeceram tantos feminicídios. Pior é a divisão e antagonismo entre ricos e pobres, empresários e funcionários: até chegou-se a “precarizar” os contratos de trabalho. Isto quer dizer “te quero até que eu precise”, depois te largo sem nenhuma preocupação sobre o que “tu precisas”, não me interessa “o teu sustento, a tua família”; só interessa o “meu lucro”.

Está voltando a perigosa “luta” entre partidos, entre esquerda e direita, colocando em risco a democracia, pois o que for feito “pelo governo” é sempre boicotado “pela oposição”; não importando se for bom ou ruim para o povo. Este é o fim da democracia, o povo não tem o poder, mas apenas o partido, a coalizão que forma o governo: eis a origem das tantas e tantas manifestações violentas que acontecem em vários países do mundo inteiro. Mais sutil e sofisticada, por isso mais perigosa, é a divisão criada pela mídia que enaltece quem tiver mais “conectados”, mais fãs. Não importando a verificação do valor, da veracidade das informações; valendo apenas o número, a fama.

O compromisso dos cristãos

Embora  a comemoração do nascimento de Jesus tenha sido ofuscada, para não dizer ameaçada e quase cancelada pelo “nefasto” espírito do comércio, do consumo, tem gente ainda acreditando num Deus que se “encarna” para ajudar a vencer o mal. Embora muitas tendências religiosas tenham valorizado demais o “céu”, diminuindo os compromissos de melhorar a condições de vida “na terra”, tem muita gente vivendo o espírito da Bíblia que prega “amai-vos uns aos outros”; “crescei, multiplicai-vos, enchei  a terra e cuidai dela como o dono cuida da própria família” e da própria casa. A palavra “dominai a terra” não significa ter o poder sobre ela, explorá-la ao máximo; e sim, ter o amor, o respeito para com essa nossa “mãe terra”.

Os desafios mais urgentes: acabar com a desigualdade social, as queimadas e... recolher o óleo

O Brasil agora está numa situação muito difícil e urgente. Não adianta se desgastar procurando culpados que paguem os danos do desastres ambientais nas florestas e nos oceanos; é mais urgente recuperar as matas queimadas, não se calando diante dos criminosos, grileiros e ladrões de terras. Não adianta ir atrás dos navios que derramaram o óleo; é preciso recolher, guardar e utilizar de forma correta a poluição das nossas praias, manguezais. E, sobretudo a vida dos peixes. E também procurar que os culpados paguem. O povo está demonstrando que é capaz de ajudar, até solucionar o problema, junto às autoridades responsáveis.

Aqui a vitória do bem está garantida: se o povo se compromete em ajudar, não tem mal que vença. O maniqueísmo na prática diria “deixa pra lá”, pois não adianta lutar. “Não queira mudar as coisas”, diz o príncipe do mal, enquanto o “Filho de Deus”, Jesus, através do Evangelho e da presença entre as pessoas que tem fé, continua a proclamar que é o amor a força maior que pode melhorar o mundo. Isto valendo também para os demais problemas que afligem a humanidade, sobretudo a desigualdade social que gera a fome, a exploração e todos os males que podem ser vencidos, quando o povo mete a cara e faz o seu papel de guardião do nosso planeta, da administração pública e dos partidos políticos.

Pode parecer injusto repetir que o povo tem o governo que merece, mas faz sentido também dizer que o governo tem o povo que merece, sobretudo para ser derrubado, mudado e processado; basta superar o heresia do maniqueísmo e acreditar que as mudanças são possíveis.


Antonio Tamarri é professor de História e Teologia