Federal do Sul da Bahia decide retirar vaga de 20 cotistas de Medicina

Universidade alega não ter dinheiro para absorver mais 20 alunos

A estudante Carolina Soares, 25 anos, estava de malas prontas. Em setembro, passaria a morar em Teixeira de Freitas, no Extremo-Sul do estado, depois de três anos em Porto Seguro. Natural de Salvador, ela se mudou para a cidade para cursar o Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

O sonho, desde o início, era cursar Medicina, que fica no campus de Teixeira. Em maio, após os três anos do BI, participou da seleção interna que dá acesso ao curso – chamado, na instituição, de curso profissionalizante – e foi aprovada. Na semana passada, fez a matrícula para começar a nova etapa, cujas aulas devem iniciar em aproximadamente dois meses. Só que esse sonho foi interrompido de forma abrupta: dois dias após se matricular, viu sua inscrição revogada.

Assim como ela, outros 19 estudantes – todos cotistas que entrariam nas vagas reservadas a pretos e pardos com e sem critério de renda – foram retirados da lista de 80 selecionados. No último dia 11, a UFSB publicou uma retificação no edital de convocação: incluiu 20 alunos não-cotistas e retirou, na mesma proporção, cotistas.

“Imagine que, na semana passada, você tinha sua vida toda programada e, de uma hora para outra, mudaram tudo. Todo mundo está indo para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) o tempo inteiro, por pressão alta, desmaio, por causa dessa situação”, desabafou a jovem, que entrou nas vagas reservadas para negros com renda menor do que 1,5 salário mínimo.

Em nota, a UFSB informou que a mudança foi resultado do cumprimento de um mandado judicial que determinou a reclassificação dos estudantes a partir da não aplicação do sistema de cotas. Ou seja: alunos não-cotistas entraram na Justiça Federal com um recurso para garantir sua matrícula. Com essa reclassificação, uma parte dos classificados excedeu as 80 vagas previstas e autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC) – justamente os 20 cotistas.

No entanto, o Correio teve acesso a uma das decisões, que diz que a UFSB deve reclassificar a estudante "deixando de aplicar como critérios de classificação para migração para o curso de Medicia o sistema de cotas utilizado, suspendendo, apenas quanto a ela, a resolução nº 07/2017 do Conselho  Universitário da Universidade Federal do Sul da Bahia, no que toca à reserva de vagas, sob pena de multa no valor de R$ 20 mil no caso de descumprimento".

O juiz Guilherme Bacelar Patrício de Assis, da Vara Federal Cível e Criminal de Teixeira de Freitas, autorizou e determinou que, se a UFSB não cumprisse, deveria pagar uma multa de R$ 20 mil para cada um dos estudantes. Segundo a instituição, não é possível “abrir novas vagas além do quantitativo indicado no registro do Curso junto ao Ministério da Educação”.

Essa decisão ocorre pouco mais de dois meses após a universidade ter tido o maior percentual de recursos bloqueados pelo MEC. Em maio, o órgão federal anunciou o contingenciamento de repasses às instituições federais de ensino superior e, na UFSB, o índice chegou a 54% de seu orçamento de custeio e investimento.

Apesar disso, a universidade informou por meio de nota que os cortes de verba feitos pelo MEC não influenciam na decisão da UFSB de como proceder nesse caso.

Segundo ciclo

O que nem todo mundo sabe é que a UFSB é diferente da maioria das universidades federais: lá, a formação acontece por ciclos. O Primeiro Ciclo, obrigatoriamente, é uma formação interdisciplinar – seja com os BIs, que existem também na Universidade Federal da Bahia (Ufba), ou com as chamadas Licenciaturas Interdisciplinares (LIs), criadas na UFSB.

Para avançar aos cursos do Segundo Ciclo – como Medicina, Direito e Engenharias –, é preciso fazer uma seleção interna que avalia os coeficientes de rendimento ao longo da primeira graduação. Desde 2017, essa seleção também reserva 55% das vagas para cotas. Segundo os estudantes, tanto em 2017 quanto em 2018, ainda que tenham existido casos de estudantes não-cotistas que recorreram à Justiça para entrar sem terem sido selecionados em suas categorias, a UFSB acatou a decisão judicial sem excluir outros alunos da reserva de vagas.

Outro dos estudantes prejudicados, que preferiu não ter seu nome revelado, acredita que a situação é recorrente por conta da estruturação em dois ciclos. “A universidade promete um segundo ciclo, mas existem pessoas não passam e têm que ficar perdendo tempo ainda no básico”.

O aluno conta que, nesta última seleção, cerca de 170 pessoas tentaram ingressar no segundo ciclo de saúde - que oferece os cursos de Medicina e Psicologia. A seleção, contudo, ofereceu 110 vagas. “Quem não passa no ano em que conclui o ciclo básico pode continuar na universidade pegando matérias ainda do básico para tentar novamente”, explica o estudante. Esse seria, inclusive, seria o destino dos alunos prejudicados pela retificação da lista.

Ao CORREIO, a UFSB informou que "de acordo com a Pró-Reitoria de Gestão Acadêmica (PROGEAC), as cotas na Universidade Federal do Sul da Bahia são utilizadas em todos os nossos sistemas de acesso, sejam via Sisu ou Edital próprio nos Colégios Universitários e na totalidade dos nossos processos seletivos, sejam de 1º ou de 2º ciclo".

O documento emitido pela instituição disse ainda que a implantação do sistema de cotas ocorreu ao longo da implantação dos cursos na UFSB. "Seguimos inicialmente com os cursos de 1º ciclo, depois com os de 2º e 3º ciclos. Desde que houve a implantação dos cursos de 2º ciclo, a UFSB tem respondido a processos judiciais sobretudo nos processos de seleção que ofertam vagas para o curso de Medicina, nosso curso mais concorrido. As ações judiciais são respondidas pela Universidade por meio da Procuradoria Federal, nas diferentes instâncias e graus de jurisdição, sendo o entendimento do judiciário bastante variado quanto ao tema".

Por fim, a instituição disse que a PROGEAC, pró-reitoria responsável pelos processos de seleção, "não vai comentar casos específicos dos estudantes por entender que é necessário garantir o direito do contraditório e da ampla defesa de todos os envolvidos e, sobretudo, por estes processos estarem ainda em curso na justiça. Desta forma, nos casos particulares, esta Universidade tem atendido às ordens judiciais e, ao mesmo tempo, tem refinado os processos e procedimentos de verificação dos alunos cotistas para fortalecer os instrumentos desta política afirmativa".

A UFSB possui três campi: um em Teixeira de Freitas, um em Porto Seguro e outro em Itabuna. Ao todo, a instituição tem cerca de 2.800 alunos matriculados.

Justiça

Parte dos estudantes prejudicados se uniram para procurar ajuda profissional. A estudante Ana Leticia Sampaio faz parte dos que conseguiram se organizar para tentar reverter o caso na justiça. “A gente se juntou para conseguir pagar por advogado particular, ele vai entrar com ações para cada um”, explica ela. Ana conta que os estudantes excluídos da lista de aprovados não receberam qualquer comunicado da instituição que justificasse a decisão. “Eu vi a lista no site e achei que tivesse algum erro. Só depois a gente, conversando pelo WhatsApp com pessoas que conhecemos na gestão, descobriu o que aconteceu”, relembra.

Agora, Ana e os colegas convivem com a incerteza de saber se o sonho de estudar Medicina vai ou não se concretizar.

“É o meu maior sonho, me sinto completamente injustiçada, já emagreci quatro quilos desde quinta-feira porque não consigo nem comer direito. A universidade nao está tendo nenhum tipo de empatia com os alunos, não se preocupa com a gente, com a nossa saúde mental. Mas eu tenho esperança de que vou conseguir passar por isso”.

A possibilidade de buscar a ajuda profissional privada não é uma realidade para todos. No caso da estudante soteropolitana Carolina Soares, por exemplo, ter acesso a um advogado particular não é uma opção. “Essa via da ‘justiça externa’, a gente não tem. O que mais me aflige nessa questão é que eu sei que tenho colegas que podem fazer uma força com a família e pagar por um advogado. Eu não tenho essa condição. Nem eu, nem alguns outros colegas”, desabafou.

Carolina vive, hoje, com o auxílio que a universidade oferece – uma bolsa de iniciação científica e auxílios de moradia e alimentação. Assim, está dentro do critério das cotas para estudantes pretos ou pardos com renda inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa (até R$ 1.497).

Filha de uma trabalhadora autônoma e de um trabalhador da área de logística de transportes que recebe um salário mínimo (R$ 998), costuma vir a Salvador uma vez ao ano. “Às vezes, minha mãe ou minhas tias fazem doações. Quando eu preciso ir a Salvador, alguma tia me dá uma passagem, mas é aquela coisa de tia”, explica.

O CORREIO procurou a Defensoria Pública da União (DPU) para questionar como os alunos poderiam receber a assistência jurídica necessária para o caso. Como se trata de uma situação dentro de uma universidade federal e as demandas judiciais são de competência da justiça federal, caberia à defensoria federal acompanhar o caso. Apesar de confirmar que o caso compete à DPU, o órgão informou que os estudantes precisariam buscar ajuda por conta própria.

“Só existem unidades da DPU em Vitória da Conquista, Feira de Santana e Salvador. Este caso deveria ser acompanhado por uma Defensoria Pública da União mesmo. Mas, como não há DPU em Porto Seguro, esses estudantes devem, infelizmente, procurar assistência jurídica gratuita em faculdades de Direito, caso exista este serviço na cidade, ou advogados particulares”, diz a nota.

Os estudantes entraram com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) e buscaram ajuda do Ministério Público Estadual (MPE), que não pode atuar no caso. O MPF foi procurado para comentar o caso, mas não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

Conflito interno

A decisão da universidade de retirar os alunos cotistas para cumprir a decisão judicial tem gerado conflitos até dentro da instituição de ensino. Segundo o professor Gabriel Nascimento, que compõe a Comissão de Políticas de Ações Afirmativas, a decisão é equivocada.

“A comissão teve uma posição divergente do praticado pela universidade em relação à decisão. O correto seria que a UFSB tivesse garantido a matrícula dos alunos que têm a decisão judicial sem revogar matrículas que já tinham sido feitas, dos alunos cotistas”, explica o professor, que ensina no campus Sosígenes Costa, em Porto Seguro.

O professor explica que o entendimento da comissão se baseia no fato de as decisões que garantiram a matrícula dos alunos não cotistas ter caráter de urgência - ou seja, as inscrições podem ser revogadas a qualquer momento. Ainda segundo o professor, a própria UFSB já recorreu das decisões - também em caráter de urgência - pedindo que as novas matrículas sejam revogadas. A revogação das matrículas dos cotistas, então, não teria sentido.

O professor destaca ainda que a decisão judicial que permitiu as novas matrículas em momento algum pediu a revogação dos sistema de cotas. “Os alunos não cotistas alegam que não deveria ter cotas, por já ter tido na seleção para ingresso. Só que a instituição entende que são graduações interdependentes, ou seja, a segunda graduação (ou ciclo) também depende de uma seleção mesmo que interna”, explica ele.

O sistema de cotas utilizado pela UFSB foi consolidado em uma resolução publicada em 2018, que não é citada pelas decisões liminares. “Em momento nenhum o juiz derrubou a resolução”, defende Gabriel.

A Comissão da qual Gabriel faz parte solicitou que o caso fosse submetido ao conselho universitário e ainda aguarda retorno da UFSB. “Acreditamos que seja a única forma de reverter a decisão de uma pró-reitoria, e tem que ser com urgência”, conta.


Fonte: Correio - Foto: acervo pessoal